TODOS CONTRA A CONSTITUIÇÃO – a revolta dos poderes

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TODOS CONTRA A CONSTITUIÇÃO – a revolta dos poderes

Procurador do Município de Fortaleza - Ceará - Brasil Mestre e Doutor em Direito Constitucional - UNIFOR Pós-Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - Portugal - FDUL Professor de Direito Constitucional

O debate sobre a melhor e mais eficaz forma de governo (constituição para o antigos) tem sua intensidade variada conforme o momento histórico e as ideias dominantes. Destaca-se, nos escritos antigos, a discussão narrada por Heródoto (História, Livro III, §§ 80-82) e travada pelos persas Otanes, Megabises e Dario sobre a melhor forma de governo a ser adotada após a morte de Cambises. As defesas da democracia, aristocracia e monarquia se desenvolvem de forma exemplar, com argumentos convincentes e consistentes a ponto de semear dúvidas quanto ao melhor governo. As variações existentes na argumentação legitimadora de cada forma de governo apontam a leitura da obra Hiero ou Tyrannicus, de Xenofonte, magistralmente exposta por Leo Strauss (Da tirania: incluindo a correspondência Strauss-Kojève. Tradução de André Abranches. São Paulo: É Realizações, 2016) e que contém o diálogo entre o poeta Simônides e o tirano Hiero a respeito dos benefícios e dos males da tirania. Afinal, a eleição do melhor governo torna-se tarefa difícil, ao menos no mundo das ideias.



"E o que significaria, do ponto de vista jurídico-político, violação reiterada e incisiva da constituição pelos Poderes? "



A organização da sociedade reivindicava a elaboração de uma estrutura normativa capaz de limitar o exercício do poder político e, ao mesmo tempo, garantir direitos. Esta estrutura é a constituição. A concepção antiga de constituição indicava a disposição administrativa concreta do Estado nos moldes romanos (McLLWAIN, Charles Howard. Constitucionalismo antiguo y moderno. Traducción de Juan José Solozabol Echavarria. Madrid: CEPC, 2016).



Com o advento das sociedades mais complexas, as funções do Estado (e aqui já nos encontramos na passagem do século XVII para o Século XVIII) se especializaram e o poder político cambiou de mãos (nação, povo, uma pessoa, um grupo, p. ex.), sempre a revelar oscilações decorrentes de conflitos interinstitucionais entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. A época era propícia para a construção de uma concepção moderna de constituição que resultaria no reconhecimento de sua supremacia formal em relação às demais normas e em sua normatividade. Estabelecia-se a vinculação e o respeito de todos (Estado e sociedade) às normas constitucionais. A constituição se firma como instrumento de controle dos governantes.

E o que significaria, do ponto de vista jurídico-político, violação reiterada e incisiva da constituição pelos Poderes? As conveniências políticas, os interesses individuais ou de grupos devem ser priorizados em detrimento da constituição? O relativismo desregrado, fundamentado no “depende”, tem justificado condutas estetizadas sob o manto da argumentação e do discurso ideológico aptas a violar e desacreditar a constituição.

O atual cenário brasileiro, mas não exclusivamente brasileiro, é representativo dessa “revolta dos poderes”, na medida em que todos (Legislativo, Executivo e Judiciário) descumprem, não raras vezes, a constituição em vigor. Nas linhas seguintes, seguem exemplos não isolados dessa revolta. Certamente, os casos não são exclusividade da história do Brasil. O Poder Legislativo brasileiro, no julgamento do impeachment de Dilma Roussef, pelo Senado Federal (art. 52, I, da Constituição Federal), determinou que o julgamento seria dividido. Como afirma Diego Verneck Arguelhes, “atendendo a requerimento de senadores da bancada do PT, o ministro Lewandowski determinou que a votação do impeachment seria dupla: primeiro, se Dilma perderia o cargo. Segundo, se seria inabilitada para funções públicas. Contudo, esse procedimento contrariava duas manifestações do Supremo sobre a questão – em uma das decisões no caso Collor, em 1992, e na decisão de dezembro de 2015 sobre o rito do impeachment de Dilma.” (Nem Juiz, Nem Senador: Lewandowski e a dupla votação no julgamento de dilma, in Onze supremos: o supremo em 2016. Organizadores: Joaquim Falcão, Diego Wernerck Arguelhes, Felipe Recondo. FGV: Rio, 2017, p. 266-268). Desta forma, o Legislativo reescreveu a Constituição Federal de 1988, em seu art. 52, parágrafo único, para dividir o julgamento. A redação originária fala de “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.” O resultado foi a perda do cargo sem a inabilitação, demonstrando que o poder constituinte possui várias facetas. Apesar da controvérsia constitucional sobre o destaque apresentado por Senadores do Partidos dos Trabalhadores – PT, prevaleceu a vontade dessa minoria. Rousseau deve ter tremido no túmulo!

No Poder Executivo, as Medidas Provisórias já são conhecidas como instrumentos de governo. Pensada para substituir o famigerado Decreto-Lei, deveria ter utilização comedida e em casos de relevância e urgência (art. 62, Constituição Federal de 1988). Cedo se constatou que não era bem assim. Numa rápida consulta ao site do Planalto (www.planalto.gov.br), constata-se que a quantidade é exagerada e fora do padrão constitucionalmente previsto. De 1988 até 2001, foram editadas 2.230 Medidas Provisórias e, de 2001 a 15/06/2017, o número foi de 784. A diminuição deveu-se a Emenda Constitucional n. 32, de 2001, que alterou o regramento das MP’s. A Constituição dispõe que, para a edição de medidas provisórias, serão observados dois pressupostos: urgência e relevância. O descumprimento de quaisquer deles resulta em inconstitucionalidade. Tal fato não inibiu a ânsia de poder dos governantes. Os Direitos Financeiro e Econômico foram alvos prediletos, bastando lembrar dos vários Planos Econômicos a partir do governo Collor.

O Poder Judiciário, intérprete da Constituição, guardião das promessas e garantidor de direitos fundamentais, também contribuiu para a revolta contra a constituição. Identificando o ativismo judicial como mero judge made law, no sentido de criar regras gerais, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, que discutiu o aborto de fetos com anencefalia, pela pena do ministro Marco Aurélio, deixou dito que “cumpre à mulher, em seu íntimo, no espaço que lhe é reservado – no exercício do direito à privacidade –, sem temor de reprimenda, voltar-se para si mesma, refletir sobre as próprias concepções e avaliar se quer, ou não, levar a gestação adiante. Ao Estado não é dado intrometer-se. Ao Estado compete apenas se desincumbir do dever de informar e prestar apoio médico e psicológico à paciente, antes e depois da decisão, seja ela qual for, o que se mostra viável,...”. (http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/adpf54.pdf).

Tal decisão permitiu que mulheres decidam sobre o destino de fetos gestados e que apresentem anencefalia. A regra é geral, sem que o debate institucional no Poder Legislativo tenha ocorrido.

E de tantos ataques contra a constituição, há quem entenda – e várias manifestações populares demonstram – que deveríamos ter no Brasil eleições diretas para a Presidência da República. A voz do povo! A voz das ruas! Curiosamente, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 81, determina que as eleições, em casos de vacância dos cargos de Presidente e de Vice-Presidente, deverão ocorrer trinta dias após a última vaga e pelo Congresso Nacional. Indiretamente, portanto. Ao que tudo indica, o hábito faz o monge.

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